| Andei léguas de sombra Dentro em meu pensamento.
 Floresceu às avessas
 Meu ócio com sem-nexo,
 E apagaram-se as lámpadas
 Na alcova cambaleante.
 Tudo prestes se volve
 Um deserto macio
 Visto pelo meu tato
 Dos veludos da alcova,
 Não pela minha vista.
 Há um oásis no Incerto
 E, como uma suspeita
 De luz por não-há-frinchas,
 Passa uma caravana.
 Esquece-me de súbito
 Como é o espaço, e o tempo
 Em vez de horizontal
 É vertical.
 A alcova
 Desce não se por onde
 Até não me encontrar.
 Ascende um leve fumo
 Das minhas sensações.
 Deixo de me incluir
 Dentro de mim. Não há
 Cá-dentro nem lá-fora.
 E o deserto está agora
 Virado para baixo.
 A noção de mover-me
 Esqueceu-se do meu nome.
 Na alma meu corpo pesa-me.
 Sinto-me um reposteiro
 Pendurado na sala
 Onde jaz alguém morto.
 Qualquer coisa caiu
 E tiniu no infinito.
 
 
 
 Na sombra Cleópatra jaz morta.
 Chove.
 Embandeiraram-se o barco de maneira errada.
 Chove sempre.
 Para que olhas tu a cidade longínqua?
 Tua alma é a cidade longínqua.
 Chove friamente.
 E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto —
 Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
 Chove, chove.
 O sorriso triste que sobra a teus labios cansados,
 Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.
 Porque é que chove?
 
 
 
 
 De quem é o olhar
 Que espreita por meus olhos ?
 Quando penso que vejo,
 Quem continua vendo
 Enquanto estou pensando ?
 Por que caminhos seguem,
 Não os meus tristes passos,
 Mas a realidade
 De eu ter passos comigo ?
 Às vezes, na penumbra
 Do meu quarto, quando eu
 Por mim próprio mesmo
 Em alma mal existo.
 Toma um outro sentido
 Em mim o Universo —
 É uma nódoa esbatida
 De eu ser consciente sobre
 Minha idéia das coisas.
 Se acenderem as velas
 E não houver apenas
 A vaga luz de fora   —
 Não sei que candeeiro
 Aceso onde na rua   —
 Terei foscos desejos
 De nunca haver mais nada
 No Universo e na Vida
 De que o obscuro momento
 Que é minha vida agora!
 Um momento afluente
 Dum rio sempre a ir
 Esquecer-se de ser,
 Espaço misterioso
 Entre espaços desertos
 Cujo sentido é nulo
 E sem ser nada a nada.
 E assim a hora passa
 Metafisicamente.
 
 
 
 
 As minhas ansiedades caem
 Por uma escada abaixo.
 Os meus desejos balouçam-se
 Em meio de um jardim vertical.
 Na Múmia a posição é absolutamente exata.
 Música longínqua,
 Música excessivamente longínqua,
 Para que a Vida passe
 E colher esqueça aos gestos.
 
 
 
 
 Porque abrem as coisas alas para eu passar?
 Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.
 Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara.
 Mas há sempre coisas atrás de mim.
 Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.
 Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
 Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.
 Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.
 Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis
 A porta abrindo-se conscientemente
 Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.
 De onde é que estão olhando para mim?
 Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
 Quem espreita de tudo?
 As arestas fitam-me.
 Sorriem realmente as paredes lisas.
 Sensação de ser só a minha espinha.
 As espadas.
 
 
 
 
 
Links em português
Fernando Pessoa do Jornal de Poesia (inclui mais de mil poemas, as suas frases mais famosas o seus heterónimos, críticas sobre êle e uma cronologia da sua vida.)Fernando Pessoa: Obra poética por Rodrigo de Almeida Siqueira (inclui poemas, críticas e informação biográfica.) | 
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